sábado, 24 de dezembro de 2011

Um outro olhar sobre a loucura.

Originalmente publicado em: http://petpol.org/2011/06/01/um-outro-olhar-sobre-a-loucura/

Erving Goffman e Michel Foucault são grandes autores que falam sobre a sociedade contemporânea, mas mais que isso eles são autores que trouxeram uma releitura sobre a questão da loucura: elas a colocaram no centro da formação de relações de poder, trazendo um debate da Psicologia para a Ciência Política. Essa releitura, que parte da relações de poder, pode ser importante para psicologia como uma diferente forma de interpretação da loucura que foge de uma visão de diagnóstico e objetividade.

Foucault, nesse contexto, parte da acusação de um novo tipo de poder no mundo de hoje, que já não é exercido diretamente por ditaduras ou fascismos. A mudança do conceito se opera no controle dos movimentos; na organização interna; a coação se faz mais sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é o exercício[1]. O poder não é mais um processo global centralizado, mas, sim, se encontra diluído em diversos setores da vida social, e que pode ser encontrado na própria formação do conceito de loucura. Goffman por outro lado estuda a interação entre indivíduos e sua comparação com um teatro: “O mundo todo pode não constituir evidentemente um palco, mas não é fácil especificar os aspectos essenciais em que [ele] não é” [2].

Foucault argumenta que o poder se dissipa das formas mais variáveis e sutis por meio de diversas instituições, e Goffman ajuda a enxergar como essas interações entre os indivíduos acontecem. Ele argumenta que seu trabalho levará em conta primordialmente a interação de tipo mais teatral e contextual, a de natureza não-verbal e presumivelmente não-intencional, quer esta comunicação seja arquitetada propositadamente quer não[3]. A comparação parece traçada de forma mais simples, Foucault acusa um novo tipo de poder que se expressa em micro-relações, enquanto Goffman estuda a interação num nível de indivíduos.

Na modernidade, a instabilidade cria uma perseguição ao outro, onde surge a loucura; a vontade de instalar uma ordem segura contra todos os desafios futuros torna-se irresistível e esmagadora[4]. O próprio nazismo pode ser um dos casos mais significativos onde uma modernização foi aliada com a criação de um outro indivíduo, e sua conseqüente perseguição. A história da loucura feita por Foucault é uma tentativa de rever como esse conceito foi mudando ao longo do tempo. Na idade média, o louco era visto como andarilho, e era bem aceito na estrutura das cidades. No absolutismo houve a criação de hospitais gerais onde o louco passa a ser visto como um distúrbio da sociedade, sendo isolado junto com os miseráveis e outros perseguidos daquela sociedade. Por final, nos dias de hoje, o homem moderno não se comunica mais com o louco:

‘’De uma parte há o homem da razão, que delega a loucura ao médico e que autoriza apenas a relação com a universalidade abstrata da doença: de outra parte há o homem da loucura, que se comunica com o outro apenas por intermédio de razões tão abstratas como são a ordem, coação física e moral, pressão anônima de grupo e a exigência de conformidade” [5]

Goffman não vai estudar diretamente a relação do poder na loucura, já que seu estudo é voltado para a relação entre indivíduos num nível de teatro. O interessante é pensar
que esse estudo, mesmo quando não intencionalmente, acabou por mostrar relações de poderes nas instituições psiquiátricas. A violência que se enxerga nessas instituições é o isolamento pela organização formal, onde cada pessoa se torna um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu[6]. O controle é feito de forma próxima a Foucault, de diversas formas sutis: a admissão; a vigia constante onde em nenhum momento o louco se encontra sozinho; a estrutura de hierarquia; e finalmente a impossibilidade de ter outro papel que não o do louco na instituição.

Goffman passou muito tempo observando instituições psiquiátricas para concluir que o eu do individuo é morto de diversas formas pelo controle irrestrito exercido nesse lugar. O controle pode não ser violento e direto, mas por meio de uma série de procedimentos e rituais, a pessoa passa ser cercada no que se é mais intimo. A entrada na instituição já marca um ritual, que pode incluir um teste de obediência ou até um desafio de quebra de vontade, o novato insolente pode receber castigo imediato e exagerado, que o obriga a pedir perdão ou se humilhar[7].

A conclusão que queremos chegar nesse breve ensaio é qual o critério para loucura, e se esse mesmo pode ser desligado das relações de poder partindo da visão da perseguição do outro na modernidade. Essa pergunta é emblemática e retomao que Foucault e outros autores já buscaram: O que na sociedade pode categorizar alguém em louco ou na sua sanidade perfeita? Existe essa delimitação clara?

A resposta à qual nos aproximamos é que a sociologia ajuda a mostrar que a loucura não é uma ilha perdida no oceano da razão e, sim, que ela pode ser entendida como um continente que se mascara das razões. A brincadeira do autor José Machado Pais nos leva a pensar na dicotomia de loucura e razão: ela é feita por rótulos, em premissas construídas, idéias preconcebidas e eventuais mentiras que de tão consensuais podem parecer verdade[8].

O contato mais próximo com o tema, revela uma outra forma, uma que busca na loucura mostrar que esse conceito é mais fluido do que como é normalmente delimitado socialmente; que as construções e relações reais entre os loucos fogem de uma simples dicotomia entre loucura e razão: não existe um louco num mar de ordem e razão, e sim uma confusão entre esses conceitos. A mensagem final da visão que parte de Goffmand e Foucault é que os loucos podem se encontrar na própria sociedade, ou como colocaria Foucault, a razão não é possível sem a loucura, ao contrário, uma razão verdadeira teria que traçar os caminhos da loucura. Na voz de uma senhora que trabalha há anos no internato com loucos em regime aberto: “Sim, andam lá fora, estão em regime aberto, mas não tenha medo deles, não fazem mal a ninguém. Tenha antes receio dos outros que não são doentes, esses é que são loucos” [9].

Referências
Bibliográficas:

FREITAS, Fernando Ferreira Pinto de. A
história da psiquiatria não contada por Foucault. Hist.
cienc. saude-Manguinhos
, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, Apr.
2004 . Available from
.
access on 25 Jan. 2011. doi:
10.1590/S0104-59702004000100005.

FOUCAULT,
Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1977.

FOUCAULT,
Michel. A história da loucura. São Paulo: Editora perspectiva, 1987.

GOFFMAN, Erving.
A representação do Eu na vida cotidiana. Petrópois: Vozes, 1975.

GOFFMAN, Erving.
Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Editora perspectiva, 1974.

PAIS, José
Machado. Nos rastros da solidão. Porto: Editora Ambar, 2006.


[1] FOUCAULT,
1977, P. 133.

[2] GOFFMAN,
1975, P.14.

[3] GOFFMAN,
1975, P.14

[4] BAUMANN,
1995, P.25.

[5] FOUCAULT,
1961, P.160 APUD FREITAS, 2004, P.77.

[6] GOFFMAN, 1974, P.22

[7] GOFFMAN, 1974, P.26

[8] PAIS, 2006, P.79.

[9] PAIS,
2006, P.25

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